Resenha: Diários de Motocicleta

Rafael
6 min readOct 5, 2019

Ernesto Guevara de la Serna, antes de ser conhecido como “Che” Guevara, era apenas um estudante classe média de medicina de Buenos Aires que decide viajar pelo continente sul-americano com seu amigo Alberto Granado, antes de se formar na faculdade. Ambos, que possuem uma vida relativamente privilegiada, na Argentina, aceitam o desafio desta viagem com uma motocicleta em condições duvidosas, com umas mudas de roupas e suprimentos para alguns dias.

Após a despedida de sua família, Guevara e Granado seguem em direção ao Chile, passando por diversos lugares da Argentina. É interessante, nessa rota feita por eles, observar o início de um grau de dissipação e de dicotomia, extremamente desigual, existente entre as áreas de Buenos Aires e o interior da Argentina que vão desde as diferenças entre campo e cidade, até as etnias das pessoas que lá habitam. Em Buenos Aires, a população possui a cor de pele muito mais voltada para o branco europeu e, no interior do país, a população possui uma identificação étnica com os povos nativos da América. Essa dicotomia está totalmente associada à época da colonização da América e a sua formação que construiu raízes escravocratas e racistas dentro da sociedade e que os frutos são percebidos, exacerbadamente, até os dias de hoje.

Prosseguindo no filme, após muitas quedas de moto e dificuldades na viagem, que vão desde os problemas de asma de Guevara, o esgotamento do dinheiro até o mau funcionamento da moto, Guevara e Granado chegam ao Chile, passam pelas cidades de Temuco e Los Angeles onde se envolvem em diversas situações para conseguirem algum dinheiro e moradia. Essas situações que os personagens se envolvem, algumas problemáticas e outras empáticas, servem para nós telespectadores conhecermos mais a fundo a figura Ernesto Guevara e quais são seus ideais. Ernesto, durante todo esse processo, tem se mostrado uma pessoa bem honesta, mas não impede de dar alguns “calotes” durante sua estadia em Temuco e também conhecemos seu propósito de ajudar as pessoas que vai além de seu ideal como médico e serve como ideal para a pessoa que ele é (em certo momento do filme, Guevara critica Granado sobre ele querer fazer uma revolução pacífica).

Ao sair de Los Angeles, Guevara e Granado, agora sem moto e caminhando a pé pelo deserto de Atacama, encontram um casal e decidem descansar com eles. Durante esse descanso no deserto, transcorre um diálogo muito importante entre o casal e Guevara, onde o casal diz que foi expulso de sua terra por um fazendeiro e eles foram obrigados a sair de sua cidade, pois eram perseguidos por serem comunistas. Se notarmos o ano em que ocorre essa viagem, 1959, percebemos que o contexto global é a bipolaridade da Guerra Fria e, era comum na época, os comunistas serem marginalizados na América, principalmente por ser uma zona de fácil influência norte-americana, e essa influência ocasionou as ditaduras conhecidas na América Latina.

O diálogo mexe bastante com Guevara, principalmente essa situação de tomada de terras. Guevara e Granado acompanham o casal até uma mina local que é explorada por uma companhia estrangeira, onde aparentemente ninguém se importa com o seu ideal, e se depara com uma situação deplorável de trabalho que os mineiros são submetidos. Guevara, sempre muito engajado aos seus ideais, confronta o chefe, mas o mesmo ameaça Guevara e diz que ele não pode fazer nada com relação a isso, aquilo é uma propriedade privada. Finalmente chegamos nesta “querida” palavra, propriedade privada. A propriedade privada alicerça o latifúndio que é a questão mais importante que tange a desigualdade da América Latina, financiada pelos Estados capitalistas e decorre da época da invasão e da colonização de toda a América, onde as terras foram tomadas e destruídas para a criação de latifúndios de monocultura.

Ao saírem das minas, os rapazes chegam à cidade histórica de Cuzco, no Peru. A primeira coisa a se notar é a forte presença de descendentes de nativos e mestiços na cidade peruana. Durante a estadia em Cuzco, os rapazes conhecem um menino que apresenta uma das situações em que mais me chamou a atenção durante o longa, onde o garoto apresenta dois muros, um Inca e um Espanhol e diz o seguinte: “Deste lado é o muro dos Incas e esse é o dos Incapazes” e, após isso, caminha falando sobre o fato da cidade de Cuzco ter sido a capital dos Incas e atualmente ser a cidade de Lima; e o filme utiliza isso para fazer uma crítica à formação dessas cidades que tendem a ser mais eurocêntricas e faz um contraste muito bem-vindo ao telespectador. Após “turistar” pela cidade, os rapazes conversam com diversas pessoas e simpatizam com as mesmas e suas tradições. Além disso, são deparados novamente com mais uma situação de roubo de terras proveniente do latifúndio para a monocultura e seguem rumo a Machu Pichu e Guevara fica extasiado com o local e imagina como teria sido a América caso ela não fosse invadida e assassinada.

Após isso tudo, Guevara e Granado vão até a cidade de Lima se encontrar com um famoso Doutor, com o qual eles haviam entrado em contato antes da viagem, e o mesmo oferece estadia aos rapazes e, no final da estadia, dá para os rapazes roupas, mantimentos, dinheiro e passagens num barco até uma localidade especializada em tratamento de Lepra para pessoas em situações extremas, assunto no qual o jovem Guevara pesquisava e buscava se especializar. Antes de chegaram à localidade do hospital especializado, Guevara é novamente exposto a uma situação extrema de desigualdade. Enquanto no barco desfrutava-se de bebidas e jogos, o barco puxava uma pequena embarcação rudimentar de pessoas de condições precárias e essa situação mexe com Ernesto.

Chegando na estação de tratamento para Lepra, os rapazes começam um trabalho voluntário. O doutor-chefe do trabalho mostra que o hospital fica ao norte do rio e do outro lado fica os pacientes, isso incomoda Guevara. Quando os rapazes atravessaram o rio para conhecer os pacientes, o doutor diz que eles devem usar luvas para tocar os pacientes a pedido das irmãs que ajudam, Guevara se recusa e aperta a mão de dois pacientes. Esse aperto faz os pacientes se surpreende e sorrirem; e novamente podemos conhecer cada vez mais um Guevara que não se importa com questões desiguais impostas e isso vem ocorrer depois também, quando Guevara acha um absurdo as irmãs voluntárias somente alimentarem os pacientes que foram a missa.

No final do trabalho voluntário, Guevara estava comemorando o seu aniversário junto aos trabalhadores do hospital e lá ele faz um belo discurso que mostra a sua visão sobre a América: “… Ainda que não sejamos pessoas significantes, e sejamos impedidos de ser porta-voz de sua causa, acreditamos e depois desta viagem, mais firmemente do que antes, que a divisão da América em nacionalidades incertas e ilusórias é completamente fictícia. Constituímos uma só raça mestiça, desde o México até o estreito de Magalhães. Então tentando me livrar de qualquer carga de provincialismo, eu brindo ao Peru e pela América unida”. Após o belo discurso, Guevara diz que quer comemorar o seu aniversário com os pacientes também e atravessa o rio nadando até o outro lado, mostrando mais uma vez seu ideal de inclusão de todos.

Dizem que viagens mudam-nos, e foi isso que fez Ernesto Guevara mudar como pessoa. Toda a sua aventura na América, vendo a desigualdade proporcionada pela exploração capitalista da monocultura, o roubo de terras e o genocídio dos povos e culturas nativas transformaram Ernesto Guevara, que futuramente iria ser conhecido como “Che” Guevara, um guerrilheiro marxista e figura importante na revolução cubana. Odiados por muitos e amados por outros, “Che” Guevara vai ser sempre uma pessoa presente nas veias abertas da América Latina e seu legado nunca deve ser esquecido pelos latinos americanos. Finalizo e me despeço desta resenha com duas frases de Guevara:“Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário” e “Ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição genética”.

Diários de Motocicleta é um longa franco-germano-brasilo-chileno-peruano-argentino-estaduniense digirido por Walter Salles e com roteiro de José Rivera e Alberto Granado.

--

--

Rafael

Formado em Relações Internacionais. Aprendendo a escrever por fins acadêmicos e por hobby.